Em artigo no Valor, filósofo Renato Janine Ribeiro
condena o movimento incipiente na sociedade brasileira para que beneficiários
do Bolsa-Família sejam impedidos de votar; proposta de plebiscito feita por
Veja no fim de semana sugeriu o tema
Neste fim de semana, a revista Veja apresentou sua
própria proposta de plebiscito à Nação, em que uma das sugestões seria impedir
o voto de pessoas que recebem transferências de renda do Estado, como os
beneficiários do Bolsa-Família. Hoje, em sua coluna no Valor,
o filósofo Renato Janine Ribeiro aborda a questão. Leia abaixo:
Quem tem medo dos pobres? - RENATO JANINE RIBEIRO
Nada mais século XIX do que ter medo do voto dos
pobres. Nada mais século XIX, em pleno século XXI, do que conservar esse medo e
pretender privá-los do direito de votar. Numa manifestação recente, uma senhora
pediu que os beneficiários do Bolsa Família perdessem o direito de eleger os
governantes. Essa ideia teve alguma repercussão. É um puro balão de ensaio, que
não prosperará, porque o sufrágio universal é cláusula pétrea da Constituição e
uma emenda neste sentido não pode sequer ser examinada pelo Congresso. Mas
vejamos o que isso significa.
O século XIX descobre a pobreza. Ela existia antes,
claro, e em enorme escala. Mas é depois de 1800 que as grandes cidades, como
Londres e Paris, são tomadas por pobres - gente que vem dos campos trabalhar
nas fábricas ou nas casas, olhando com espanto, e depois com crescente ódio,
para quem regurgita de riqueza enquanto eles passam fome. É o que a
historiadora Maria Stella Bresciani chama de espetáculo da pobreza. Eles formam
o que o historiador Louis Chevalier denominou "classes laboriosas, classes
perigosas": os operários ameaçariam o "statu quo" vigente. Havendo
o sufrágio universal, a maioria de pobres poderia decidir confiscar os bens dos
ricos e reparti-los entre si. Esse é o grande medo do século XIX.
Para fazer-lhe frente, a elite recorre a dois ou
três expedientes. Um deles, que ora funciona, ora não, é deixar o poder
executivo nas mãos de um monarca; mas isso não cabe em regimes democráticos ou
semi, como o norte-americano, o britânico, o francês. Outro é ter um Senado ou
Câmara Alta de espírito conservador, com membros nomeados (os Lordes ingleses,
os Pares franceses) ou eleitos por um mandato mais longo, a quem caberá refrear
os ímpetos da Câmara Baixa, aquela que é eleita pelo povo inteiro. E,
finalmente, o voto censitário, ou seja: o direito de voto dependeria da renda
ou propriedade do indivíduo. Pobres simplesmente não votariam. É célebre a
resposta de Guizot, primeiro-ministro de Luís Felipe, rei da França, quando a
oposição lhe pede que baixe as exigências econômicas para votar:
"Enriqueçam-se", diz ele. Ganhem mais, tenham mais, que poderão votar.
No Império do Brasil, era a mesma coisa.
Quais as razões dadas para restringir o voto a quem
tem posses ou renda elevadas? Entendia-se que essas pessoas seriam mais
racionais. Quem vive da mão para a boca nada tem a perder, portanto, não é
controlável. Essencialmente, é isso: vota quem tem a perder. Se eu sou rico,
não quero políticas irresponsáveis, que poriam a perder a economia, o Estado,
talvez a independência de meu país. Se sou pobre, que diferença me faz? Já
tenho tão pouco que qualquer mudança pode ser para melhor. Exigia-se ter
"bens de raiz", sinônimo de propriedade, termo interessante: somente
quem está fixado ("enraizado") na sociedade, com bens ou rendimentos
que ofereçam uma espécie de caução ao que diga ou faça, merece votar. Os
outros, se votassem, não pagariam pelas consequências de seu voto.
Isso mudou por completo ao longo do século XX. O
avanço da causa democrática levou as sociedades a repudiarem o voto censitário.
Negar o voto aos pobres se tornou indigno. Além disso, quem deflagrou as
guerras mais mortíferas do século não foram os pobres. Se a Alemanha e a Rússia
imperiais rumaram para o desastre em 1914, não foi por iniciativa de seus
miseráveis, mas de seus príncipes e nobres, em suma, dos mais ricos. E os
pobres foram, sim, quem mais arcou com os custos dessas guerras infames. Deles
saiu a maior parte dos milhões que morreram em batalha ou de fome. Mais perto
de nós, a crise de 2008 não foi causada pelos pobres ou beneficiários da
previdência social norte-americana. Não há base empírica para culpar os mais
pobres pela adoção de políticas desastrosas.
Hoje, se alguém sugere, ainda que implicitamente,
que pobres não votem, está retomando um imaginário antigo, arcaico. Na verdade,
o século XX, sobretudo em sua segunda metade, mostrou que não é preciso negar
aos pobres o voto para evitar que eles tomem os bens dos ricos; o circo - isto
é, o imaginário do entretenimento - cumpre muito bem esse papel. Se for somado
ao pão, isto é, à supressão da fome e da miséria, dificilmente os pobres se
revoltarão. Isto, se eu quiser dar um argumento de esquerda. Um argumento mais
moderado é: todo aquele que tem futuro - o que geralmente se chama
"família" - se interessa em não o colocar em risco e, por isso, não
apoia políticas irresponsáveis. É quando o trabalhador passa a ter, em vez de
prole, uma família, quando sua renda se torna suficiente para viver mais tempo
e criar filhos, que ele deixa de apoiar revoluções nas ruas. Daí, por sinal,
que alguns radicais culpem a família por um certo conservadorismo que as
classes trabalhadoras assumem.
Mas, de todo modo, é sinal de deficiência na
cultura política a proposta de que perca o direito de votar quem viva de
esmolas - um tema ainda mais antigo, porque grassou no século XVII inglês.
Afinal, um Estado sempre arbitra transferências de riquezas; ele pode
destiná-las aos mais ricos, como fez por milênios, ou começar a transferi-las
aos mais pobres, o que é recente mas, certamente, do ponto de vista moral, não
é pior.
Em minha última coluna critiquei Marina Silva
por deixar passar a eleição de 2010 e as manifestações recentes, sem organizar
sentimentos que tendiam na direção de sua Rede. No mesmo dia em que saiu a
coluna, Marina entrou em contato comigo, por meio do professor Ricardo
Abramovay, querendo conversar, o que fizemos dois dias depois, longamente.
Tratarei do assunto numa futura coluna. (247)
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